A implementação de procedimentos específicos (obrigação acessória de cadastramento de empresas prestadoras de serviços situadas fora do Município) deve estar em consonância com as diretrizes impostas no próprio texto constitucional, não sendo possível exigir tributo com fundamento de validade nas normas infraconstitucionais.
Em junho de 2021 foi finalizada – em definitivo – a discussão. O que muda com o fim da exigência do CPOM?
Desde a edição da LC 116/2003 tem-se, como regra geral, que o Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN) deve ser recolhido no município em que está localizado o estabelecimento do prestador dos serviços, nos termos do artigo 3°.
Como é sabido, em 2005, foi publicada a lei 14.042/20051, que instituiu o Cadastro de Empresas de Fora do Município (CPOM) na cidade de São Paulo. Com a implementação desta regra, prestadores de serviços localizados fora do município paulistano, que prestam serviços específicos2 para tomadores situados na capital paulista, devem aderir ao CPOM para que não sofram a retenção na fonte do ISSQN. Do contrário, o profissional pode incorrer em bitributação, uma vez que tem que recolher o imposto no município em que está sediado, bem como na cidade em que efetivamente prestou o serviço.
Nesse contexto, cabe observar que foram estabelecidos diversos procedimentos para análise e tramitação do pedido de inscrição (CPOM), o que originou práticas lentas para restituição3 dos valores retidos de prestadores estabelecidos fora do Município de São Paulo quando do preenchimento da totalidade dos requisitos e, por conseguinte, da efetivação do cadastro.
É neste pano de fundo que, com o passar dos anos, obrigações similares a essa foram implantadas por diversas prefeituras no país, muitas vezes com outra denominação. É o caso, por exemplo, da Declaração de Serviços Recebidos (DSR), em Niterói (RJ); do Cadastro de Empresas Prestadoras de Outros Municípios (CEPOM), no Rio de Janeiro (RJ) e do Registro Auxiliar de Nota Fiscal de Serviço (RANFS), em Feira de Santana (BA), dentre outros. Exigências que, à toda evidência, merecem críticas.
De acordo com as justificativas dos municípios, a inscrição está baseada na possibilidade de identificar pessoas jurídicas que simulam seu estabelecimento em outra localidade, representando um mecanismo antifraude, inclusive no combate à guerra fiscal. No entanto, com o passar do tempo, evidente que o CPOM representou uma alternativa dos municípios para trazer a receita do imposto para si, quando não eram competentes para tanto. Acontece que, a mera presunção não é capaz de instaurar a relação jurídica tributária para exigência de imposto.
Ainda, sem qualquer pretensão de exaurir todas as peculiaridades e discussões que envolvem a matéria, nos termos do artigo 146, inciso III, da CF/88, cabe à lei complementar estabelecer normas gerais no âmbito do direito tributário, principalmente sobre definição de tributos e suas espécies, obrigação, lançamento e crédito.
Neste sentido, com fundamento no artigo 113 do Código Tributário Nacional (CTN – lei 5.172 de 1966), a obrigação tributária divide-se em: (i) principal e (ii) acessória. Em suma, a obrigação principal tem por escopo obter recursos financeiros através do pagamento de tributos, sendo que a obrigação acessória não possuiu caráter econômico, deriva da legislação tributária e tem por finalidade as prestações – positivas ou negativas – em favor do interesse da arrecadação ou da fiscalização de tributos.
Portanto, importante registrar que a implementação de procedimentos específicos (obrigação acessória de cadastramento de empresas prestadoras de serviços situadas fora do Município) deve estar em consonância com as diretrizes impostas no próprio texto constitucional, não sendo possível exigir tributo com fundamento de validade nas normas infraconstitucionais. Isso porque, esses procedimentos não representam instrumentos hábeis para estabelecer o fato jurídico da exação. Aceitar a validade da extensão do aspecto espacial do ISSQN implica reconhecer uma extraterritorialidade da lei do imposto.
No mais, no âmbito tributário, além do princípio da legalidade, é imprescindível para a implementação das obrigações acessórias a observância dos princípios da isonomia, da ordem econômica (livre concorrência e livre iniciativa), da eficiência (minimização de custos), da praticabilidade, da razoabilidade, da proporcionalidade, da capacidade de colaboração e da supremacia do interesse público sobre o particular.
Isto posto, o que se indaga ao longo dos anos é, qual é a adequação, necessidade e proporcionalidade do CPOM? Note-se que direitos dessa estatura não podem ter seu exercício tolhido, uma vez que tais diretrizes têm por finalidade básica a proteção contra intervenções estatais desnecessárias ou excessivas por parte das autoridades competentes, que causem aos contribuintes danos mais graves que o inevitável.
Nos parece, inclusive, que tal exigência se reveste de caráter punitivo, uma vez que estes municípios cobram o imposto de prestadores de serviços que sequer estão situados nesta cidade, mas que deixam de cumprir mero cadastro.
Feitas essas considerações, interessante observar que a LC 175/2020, que definiu novas regras sobre o local de incidência do imposto – ISSQN devido no local em que se situa o tomador dos planos de saúde e medicina; administração e gestão de fundos e clubes de investimento; administração de cartão de crédito ou débito e congêneres; administração de carteira de valores mobiliários; e arrendamento mercantil (leasing) – vedou expressamente a exigência de cadastros municipais em relação aos contribuintes não estabelecidos no território do tomador, gerando novos argumentos na defesa dos contribuintes eventualmente prejudicados.
Muito embora as legislações municipais apresentem similitudes, o que se propõe neste artigo é suscitar a discussão a respeito dos dados e fatos inerentes ao CPOM instituído pela Prefeitura de São Paulo, por meio da lei 13.701/2003 (com alterações introduzidas pela lei 14.042/2005) e os desdobramentos no Supremo Tribunal Federal (STF).
Pois bem. Muitos prestadores de serviços insatisfeitos com tal exigência optaram em discutir judicialmente a legalidade e constitucionalidade da imposição de uma obrigação acessória em Município diferente do local em que está situado. O assunto tomou grandes proporções e foi tema de repercussão geral no RE 1.167.509/SP4, submetido ao plenário do STF em sessão virtual de julgamento encerrada em fevereiro de 2021.
Em síntese, o STF, por maioria, deu razão às alegações dos contribuintes ao declarar que é incompatível com a Constituição Federal disposição normativa que prevê a obrigatoriedade de cadastro, em órgão da Administração municipal, de prestadores de serviços não estabelecidos no território do município, impondo-se ao tomador o recolhimento do ISSQN quando descumprida tal obrigação.
Segundo bem explanado pelo relator do caso, ministro Marco Aurélio, não cabe aos municípios a instituição de obrigações acessórias destinadas a contribuintes que não integram a relação jurídico-tributária. Não obstante, asseverou que a legislação em questão afronta prescrições de natureza constitucional, usurpando competência tributária de outrem.
Ainda assim, mesmo após prolação da decisão favorável pelo STF, os contribuintes paulistanos permaneceram com dúvidas e incertezas sobre o procedimento a seguir, tendo em vista que a Secretaria Municipal da Fazenda de São Paulo publicou, em meados de abril de 2021, nota de esclarecimento5 informando que o CPOM “ainda está em vigor e produzindo todos os seus efeitos jurídicos, inclusive quanto à obrigatoriedade de seu preenchimento e quanto aos efeitos jurídicos e tributários da respectiva omissão em fazê-lo.”
À época da publicação da nota de esclarecimento pelo Município de São Paulo, aguardava-se, ainda, o julgamento dos Embargos de Declaração opostos pela Administração Fazendária, os quais tiveram provimento negado pelo STF em 5.6.2021.
Oportuno destacar que, com base nos dados apresentados pelo Município de São Paulo, atualmente, há 177.285 contribuintes com cadastro ativo no CPOM, sendo que, no exercício de 2020, “o montante retido pelos tomadores de serviço foi de R$ 234 milhões”. Levando em consideração o período de 5 (cinco) anos, a Prefeitura de São Paulo assevera que, com o acórdão embargado, o impacto financeiro negativo em suas contas pode superar R$ 1 bilhão de reais. A perda estimada de arrecadação de ISSQN por ano é de aproximadamente de R$ 120 a R$ 288 milhões.
Diante do exposto, resta claro que, independente da perda estimada, conclui-se que essa problemática deveria ter sido encerrada definitivamente em 05.06.2021, com o trânsito em julgado da decisão proferida pelo STF. No entanto, a insegurança jurídica despertada nos contribuintes ainda é latente.
Se por um lado, com o trânsito em julgado do RE 1.167.509/SP, em tese não restam mais dúvidas a respeito da inconstitucionalidade da obrigação de os prestadores de serviços estabelecidos fora do município se cadastrarem na Prefeitura de São Paulo, há certeza quanto à dificuldade do cumprimento da norma pela capital paulista e seus possíveis desdobramentos jurídicos.
Nesse contexto, cabe trazer algumas reflexões.
Após a publicação da decisão pelo STF (fev/21), os tomadores de serviços se viram em uma grande encruzilhada, pois imediatamente diversos prestadores situados em outros municípios passaram a solicitar o pagamento pelo serviço sem a retenção na fonte do ISSQN, haja vista a declaração de inconstitucionalidade de referida cobrança, contudo, a Prefeitura de São Paulo seguia exigindo o cumprimento de seus normativos legais, como demonstrado pela nota de esclarecimento publicada em 19.4.2021.
É de se preocupar que, mesmo após o trânsito em julgado, o Município de São Paulo mantenha tal exigência, ferindo princípios basilares dos contribuintes. E o mais grave: se os tomadores de serviços deixarem de exigir o CPOM de prestadores estabelecidos fora do município paulistano, poderá a Prefeitura autuá-lo impondo multas punitivas? Ao revés, se os tomadores de serviços continuarem exigindo o CPOM, a contragosto do que determinou o STF, caberá medida judicial a ser ajuizada pelos prestadores de serviços contra a retenção indevida do ISS? Qual é o impacto desses desdobramentos nas relações jurídicas/comerciais e na manutenção das atividades dessas pessoas jurídicas?
Esse ponto é de extrema relevância pois, não é a primeira vez que o contribuinte tem êxito em tema tão importante, contudo, enfrenta dificuldade para implementar seus direitos carimbados pela Carta Magna.
Nesta linha de raciocínio, merece igual destaque a reflexão sobre a possibilidade de os contribuintes pleitearem junto ao Município a restituição dos valores indevidamente recolhidos ao longo dos anos.
Isso porque, como não houve modulação dos efeitos da decisão do STF, ou seja, a sua aplicabilidade não se restringiu a eficácia temporal em controle difuso de constitucionalidade, de modo a terem efeitos exclusivamente para o futuro (prospectivos), dá oportunidade para que contribuintes prejudicados solicitem a restituição de valores pagos a maior nos últimos 5 (cinco) anos.
Há de se pontuar que, dificilmente a restituição se dará por via administrativa, de modo que os contribuintes que se sentirem lesados poderão ajuizar a medida judicial cabível.
Com a decisão, o STF delimita as regras de discriminação de competências tributárias. No entanto, uma vez que o objeto da análise teve por fundamento a lei paulista, aos contribuintes, resta aguardar o posicionamento das demais localidades sobre a matéria, no âmbito dos 5.568 municípios brasileiros. Nesse diapasão, o fim da guerra fiscal travada entre os municípios permanece muito longe do fim, considerando que ainda há diferença de tratamento aplicado nas legislações de cada cidade.
O tema, como se vê, certamente comporta novas reflexões e desdobramentos. Em síntese, dúvidas não há que, quando os contribuintes se sagram vencedores nas disputas judiciais com a finalidade de reaver os valores recolhidos indevidamente, começam a se preparar para as novas batalhas, até mesmo pela morosidade na internacionalização das decisões e dos diversos empecilhos criados pelos Fiscos na tentativa de prolongar os efeitos financeiros.
Fonte: Migalhas.com.br
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